Este é o encerramento oficial do Café das 5. Aos interessados em literatura de Língua Portuguesa, sugiro o projeto Em bom português.
Obrigada e até mais!
Este é o encerramento oficial do Café das 5. Aos interessados em literatura de Língua Portuguesa, sugiro o projeto Em bom português.
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Livro de contos com tom de crônica em alguns momentos. Notícias de jornal, acontecimentos banais e o cotidiano parecem alimentar o autor.
O viés adotado é o da violência. Ferramenta que o autor maneja bastante bem. Quase sempre explícita. Parte dela para explorar aquilo que o cerca.
Assassinato, estupro, maus tratos. A violência em estado bruto. Pobreza, humilhação, morte. A violência subjacente.
Até onde sei, é o único livro de contos/crônicas de Gonçalo M. Tavares. Em Portugal, é possível acompanhar a colaboração do autor na mídia e encontrar seus contos em diversas coletâneas. Para os leitores brasileiros, essa é uma boa oportunidade de conhecer esse registro específico, diverso dos romances, poemas e demais textos do autor.
Ficha técnica: “Água, cão, cavalo, cabeça”, de Gonçalo M. Tavares, Caminho, Portugal (2006)
Sem medo de assumir riscos, a Festa Literária de Paraty transforma-se num grande fórum de debate de ideias
Das 20 mesas que constaram da programação oficial da Festa Literária Internacional de Paraty, incluindo nessa conta a conferência de abertura, aproximadamente metade contou com a participação exclusiva de escritores. Mas o que poderia parecer um contrassenso, considerando se tratar de uma festa literária, foi o que deu força a esta oitava edição do evento.
As críticas começaram cedo, com a escolha do antropólogo e sociólogo Gilberto Freyre como homenageado da festa. E as mudanças não ficaram por aí. A programação oficial da Flip deste ano incluiu três mesas voltadas à discussão da obra do homenageado da vez, o que não aconteceu nos dois anos anteriores.
Mesmo nas mesas das quais só participaram autores, o debate muitas vezes acabou extrapolando o fazer literário. Irã, Israel, fundamentalismo, religião foram temas fortes nas conversas com Azar Nafisi (escritora iraniana), A. B. Yehoshua (escritor israelense), Salman Rushdie (escritor indiano/britânico) e Terry Eagleton (crítico cultural inglês), por exemplo.
Isso significa que a Flip está perdendo o foco? Pelo contrário. A Festa Literária de Paraty se tornou um grande palco para o debate de ideias envolvendo personalidades de expertise e países distintos. Os livros estão lá, é claro, por toda a parte. Mas a matéria do que eles são feitos ganhou espaço, numa versão expandida do mundo literário.
Ferreira Gullar
Entre tantas atrações, Ferreira Gullar foi seguramente um dos destaques. Participou de sessão de leitura de poemas de Carlos Drummond de Andrade e, na mesa seguinte, falou sobre sua própria carreira, suas obras e seu modo de pensar.
Bem humorado e inspirado, conquistou a platéia, que, a bem dizer, estava muito disposta a ser conquistada por ele. O nascimento da poesia concreta, seu relacionamento com os poetas concretistas, o movimento neoconcreto, o papel da militância política em sua vida, o exílio, os bastidores da criação do Poema Sujo, um dos seus poemas mais conhecidos, lançado em livro em 1976, foram alguns dos temas rememorados.
Em setembro, Gullar vai lançar um novo livro de poesia, “Em alguma parte alguma”, depois de jejum de 11 anos. Ao ser questionado sobre as razões que o levaram a ficar tanto tempo sem publicar, o poeta, que por muito tempo acreditou que seria pintor, respondeu: “Arte é uma coisa que nasce sem a gente saber e é só assim que tem graça”.
Gullar acaba de ganhar o prêmio Camões, considerado o mais importante prêmio literário para autores de Língua Portuguesa, concedido pelo conjunto da obra. Em poucas palavras, conseguiu sintetizar sua ideia de arte: “A arte existe porque a vida não basta”. E fez questão de dizer que isso não era apenas uma frase de efeito, e sim ‘a verdade‘.
Mas nem só de convidados ilustres faz-se a festa. Há uma figura essencial para o sucesso da Flip que nem sempre é lembrada. São os mediadores. Cabe a eles o muitas vezes difícil papel de conduzir a conversa, estimular a participação de todos os convidados, incentivar a palavra, enfim, fazer render o encontro.
Destaques da mediação
Em minha opinião, o melhor deles é Ángel Gurría-Quintana, jornalista mexicano que já virou presença obrigatória na Flip. Gosto do Ángel porque ele realmente conhece seu trabalho. Sabe quando intervir e quando deixar a conversa seguir por conta própria. Faz a engrenagem funcionar e depois sai de cena. Não por acaso, coube a ele mediar três mesas dessa vez.
Também gostei da atuação do Samuel Titan Jr., que segue caminho bem diferente do Ángel. Na conversa com Ferreira Gullar, Samuel garantiu uma boa dose de espontaneidade. Também já conhecido da Flip, ao mesmo tempo em que provocou o desenrolar do discurso do poeta, divertiu-se junto com o público. Fez lembrar que estávamos, mais do que num evento literário, numa festa dedicada a pessoas que simplesmente gostam dos livros e do que eles representam.
Uma boa surpresa foi a jornalista Cristiane Costa, que também fez um ótimo trabalho nas duas mesas que mediou. Introduziu o debate trazendo informações interessantes e pertinentes. Usou seu conhecimento e sua experiência para criar uma plataforma que serviu de base para o debate.
Enfim, três mediadores eficientes, com estilos muito diversos. Espero encontrá-los outras vezes.
Com transmissão ao vivo, via internet, de todos os debates e intensa cobertura de mídia, a Flip e seus convidados invadiram os jornais antes, durante e depois do evento. A meu ver, esse é um dos grandes méritos do evento: tirar a literatura dos cadernos especializados e trazê-la para o espaço nobre dos primeiros cadernos. Muitas vezes, com direito à chamada de capa.
Se as mudanças desta oitava edição da Flip vieram para ficar ou se prestaram exclusivamente a esta ocasião, não se sabe. Também não importa. Enquanto Paraty servir de cenário para o debate cultural em sentido amplo, envolvendo um público tão diverso como o da Flip, que vai de especialistas a aficionados, do erudito ao leigo, do acadêmico ao profissional de mercado, a festa dos livros continuará valendo a pena.
Veja entrevista com Beatriz Bracher publicada no Cronópios, portal de literatura, no dia 17 de agosto. Este texto faz parte projeto “Em bom português”, que reune perfis e entrevistas com diversos autores de língua portuguesa.
Uma história de amor. Pouco convencional, é verdade. Ainda assim, uma história de amor. Maria das Graças, faxineira, casada, apaixona-se – embora contra sua vontade – pelo senhor Ferreira, velho aposentado para quem trabalha três vezes por semana.
Ao longo do romance, o autor traz à tona o cotidiano dos trabalhadores urbanos, daqueles que chamamos de “massa”. O termo é ótimo: um número muito grande de pessoas, incontável, indistinto, sem nome, sem educação, sem rosto, sem cultura, sem dinheiro e, a característica mais importante, a identificação de um grupo ao qual NÓS não pertencemos. Gente que vive da mão pra boca. Ou, como já ouvi num filme (“O maior amor do mundo”, direção e roteiro de Cacá Diegues, 2006), gente “de verdade”.
A partir de Maria da Graça e do seu amor contrariado pelo senhor Ferreira, Valter Hugo Mãe expõe o tecido que forra a sociedade portuguesa. O tecido grosseiro e resistente, o tecido barato, reles, capaz de segurar o estofo e suportar a capa de cetim, renda ou brocados. A capa sofisticada e bonita. Agradável de se ver e tocar.
A crítica social, subterrânea, mas evidente, não vem sozinha. Surge ao lado de questões como a crescente onda de imigrantes que chegam a Portugal, as relações assimétricas entre homem e mulher, a religiosidade do povo português. Nesse último quesito, interessante notar que Maria da Graça, embora comece o livro como mulher devota, logo declara guerra contra São Pedro, às portas do céu.
A feminilidade e o erotismo da mulher portuguesa numa sociedade de contornos conservadores também marcam presença, seja na figura de Maria da Graça, seja via sua amiga Quitéria.
Comentário só para brasileiros: em Portugal, Maria da Graça não é “faxineira”, é “mulher a dias”. Como se a Maria da Graça só fosse mulher de vez em quando, em dias certos. Exatamente quando está trabalhando.
Para quem nunca leu Valter Hugo Mãe, este é um bom começo. O frescor da linguagem, o apelo às imagens, a paixão/compaixão que marcam seus personagens estão todos lá. E dá até para ficar com um sorrisinho no rosto ao final do livro.
Ficha Técnica: “o apocalipse dos trabalhadores”, de Valter Hugo Mãe, editora Quidnovi, Portugal (2008)
Violência. Física, moral, social. Do homem contra a mulher. Do patrão contra o empregado. Do dinheiro contra a miséria. Do culto contra o bruto. Da arte – essa, a única violência que merece vingar.
O apaixonado Baltazar, em sua louvável missão de salvar a alma da esposa, Ermesinda, passa a espancá-la. Essa é a forma encontrada por ele de educá-la. Sabedor da inferioridade da mulher em relação ao homem, toma para si, altruisticamente, a dolorosa missão.
O cenário é desolador. Árido e bruto. Não tanto pela natureza que cerca os personagens, mas sim pela natureza dos próprios personagens. Cenário e personagens construídos, também eles, numa linguagem primitiva. Numa espécie ancestral da palavra.
Palavra que ainda não se transformou em palavra, que está a caminho de ser palavra. Mas que não é e nem será. Terá que morrer assim, sem metamorfose. E esperar pelo tempo. Assim como os homens, como os Sargas. Homem-besta. Homem a meio do caminho. Esboço. Uma humanidade falha e incompleta.
A ignorância como vilã e álibi. Aliás, difícil identificar vilões e heróis. Todos procuram cumprir seus papéis. E aí reside a verdadeira tragédia. Baltazar não foge às suas responsabilidades de homem e marido. Ermesinda se esmera em subjugar-se ao mando dos homens.
Em meio a isso, a arte e a comoção que causa. Arte sem cultura. Arte sem educação. Arte em meio à miséria. Arte. Que não resgata, não redime. Arte só arte.
Com este romance, o segundo do autor, Valter Hugo Mãe conquistou o Prêmio Saramago, em 2007. Não, não é um livro para se ler na praia. Sim, haverá efeitos colaterais. (No meu caso, uma dorzinha idiota no estômago, como se eu tivesse comido pedras.) Mas, definitivamente, é um livro a ser lido. Será lançado, no Brasil, pela Editora 34, agora em agosto.
Ficha Técnica: “o remorso de baltazar serapião”, de valter hugo mãe, editora Quidnovi, Portugal (2006)
nós éramos os sargas, o aldegundes sarga, dos sargas, diziam. ele é sarga, é dos sargas cara chapada. nada éramos os serapião, nome da família, e já nos desimportávamos com isso. dizia o meu pai, o povo simplifica tudo e a nós vêem-nos com a vaca e lembram-se dela, que é mais fácil para se lembrarem de nós e nos identificarem. a vaca era a nossa grande história, pensava eu, como haveria de nos apelidar a todos e servir de tema de conversa quando perguntavam pela mãe, pelo pai, perguntavam pela vaca, magra, feia, tonta da cabeça, sempre pronta a morrer sem morrer. e riam-se assim com o nosso disparate de ter um animal tão tratado como família, e não entendiam muito bem. não fazia mal, achávamos que éramos muito lúcidos, e adorávamos a sarga, mesmo nas noites de tempestade quando se amedrontava e nos obrigava a acordar. o aldegundes vinha dizer-nos que ela tinha água nas patas e que em pressas se devia varrer dali inundação que lhe dava medo, e ele não reparava que também se sujara nos pés e fedia, enquanto cheirávamos e agoniávamos de tormento sem mais sonos.
(Pág. 10)
Primeiro romance de Valter Hugo Mãe, escritor português. Conta a história de Benjamim, menino que decide ser santo. Mas, como todos sabem, vida de santo não é nada fácil. E a do garoto não foge à regra.
A santidade do menino é dolorida. Se traz consolo aos que assistem de fora, destrói um a um os que lhe são próximos e caros. E tudo acontece na melhor das intenções. (Apesar ou por causa delas?)
A história é contada a partir dos olhos da criança – modo eficiente de cativar e comover o leitor – , que esbanja amizade e amor, não por um, mas por todos. O garoto realmente convence como santo ou candidato a.
Por toda a obra, perpassa uma crítica à igreja, representada na figura do padre, sempre insensível aos infortúnios do menino e em postura de combate. A famosa ‘caridade cristã’ não parece tocar em momento algum tal personagem. Nessa contraposição Benjamim/padre sobressai a distinção religiosidade/igreja.
Mas, em primeiro plano, trata-se mesmo de uma história de amor. E é difícil aceitar que o amor cause tanto estrago. Também é uma história triste, de personagens desencontrados e perdidos. Junte-se a isso uma beleza plástica, marcada por imagens, ideias, sons e construções de linguagem que não nos deixam esquecer que Valter Hugo Mãe, antes de chegar a este romance, percorreu um bom trajeto na poesia.
Ficha Técnica: “o nosso reino”, de valter hugo mãe, editora Quidnovi, Portugal (2004)
eu descobri muito cedo, o homem mais triste do mundo recolhia os mortos, juntava-os um a um nos braços, e dava-lhes terra e silêncio para comerem, até que parecessem a terra e o silêncio e os pudéssemos voltar a ter entre nós, como os que ficavam segurando e rodeando as flores do jardim só capazes de sussurrar na aragem mais leve. mortos de terra entre nós, para entre nós preservarem uma ligação com as nossas almas, eram como um perfume débil percebido apenas pelas gentes mais sensíveis.
(Pág. 10)